quarta-feira, 15 de novembro de 2017

VIDAS DE GRANDES MULHERES (Henry Thomas e Dana Lee Thomas - Livros do Brasil, Lisboa) GEORGE ELIOT (1819-1880) - 4

«Setembro de 1856 inaugurou nova fase na minha vida», escreveu ela no seu Diário. Porque, nessa época, começou a série de Scenes from Clerical Life, histórias curtas sobre a gente do campo que conhecera quando criança. Essas histórias foram logo aceites para serem publicadas no Blackwood's Magazine. Em vista disso, pôs-se a trabalhar num romance de verdadeiras proporções. Passara da filosofia à ficção, saboreando com gosto a mudança de cena. A dela seria uma literatura do «povo humilde» - os deserdados e os párias de quem ninguém fazia caso. «Pintem-nos um anjo, se quiserem... mas não expulsem da região da arte essas velhas mulheres que crispam as mãos gastas pelo trabalho, esses rudes aldeões que vão folgar numa suja taberna; essas costas curvadas e essas estúpidas faces consumidas pelo tempo que se baixaram sobre a enxada e executaram o pesado trabalho do Mundo... Dessa gente vulgar, uma grande parte tem uma consciência e sentiu a sublime vocação de fazer aquilo que é direito e por isso mesmo árduo; essa gente tem as suas secretas mágoas e sagradas alegrias; os seus corações esgotaram talvez os seus sentimentos com o primeiro filho, e choraram ante a morte inelutável... Não é patético no meio da insignificância?» Ela colocou o nome Mary Anne, crítica da Westminster Review, no arquivo dos pedantes, e tomou para o seu novo público o pseudónimo de George Eliot. George em honra do seu marido George Henry; Eliot por ser «uma palavra sonora e bombástica».
Escreveu a história do carpinteiro Adam Bede e do seu amor por Dinah Morris, uma pregadora metodista. O livro alcançou enorme êxito. Toda a Inglaterra se agitava com indagações acerca desse George Eliot. Que espécie de homem era ele? Várias versões se espalharam. Um juiz de comarca reivindicou a descoberta da identidade do autor. Não era outro senão um Mr. Liggins que vivia em Nuneaton, «filho de um padeiro, um homem sem nenhuma evidência na sua cidade, de maneira que é possivel não terem ouvido falar dele... Dizem que ele nada ganha com Adam Bede, e que o dá gratuitamente a Blackwood».
Imediatamente, um bando de admiradores dirigira-se para o campo, a ver esse tímido, retraído e assombroso «autor». Acharam-no a lavar a sua roupa numa bomba. «Ele não tem criado e faz tudo sozinho.» E manifestou-lhes «tal reverência, que uma pergunta impertinente teria sido impossível». Somas de dinheiro foram levantadas por subscrição, em toda a Inglaterra, para pôr na vertical Mr. Liggins, muito mal por causa da bebida. Distintos visitantes reuniram-se em quantidade crescente nesse santuário, junto à bomba. E todo esse tempo o pobre Mr. Liggins, que de repente se tornara célebre «por não fazer nada, afinal», inclinou-se reverente ante os seus devotos recém-surgidos. Ainda outras notícias chegaram ao conhecimento de George Eliot, até que por fim ela se apresentou como verdadeiro autor de Adam Bede.
Escreveu depois a segunda novela, The Mill on the Floss. Compôs esse livro com tanto receio como se não fosse famosa. Nunca tivera medo de ficar na obscuridade, mas apenas de um malogro artístico. Após ter alcançado novo êxito com esse estudo autobiográfico de um amor fraternal, ela voltou-se para a história de Silas Marner, o tecelão de Raveloe, um desditoso, alquebrado e cínico pária da sociedade que amontoa um tesouro, e que, uma noite, ao voltar para casa, encontra uma criancinha na soleira da porta e o seu ouro surripiado. «Destes é o reino dos céus.»
A inquietação de George Eliot, entretanto, não lhe permitiria por muito tempo ficar com uma criança e criá-la em Yorkshire. Ela desejava abarcar com os tentáculos da sua imaginação as experiências de todos os espíritos humanos em todas as épocas. Viajou para a Itália, mergulhou num estudo da Renascença e «ressuscitou» o século XV, revivendo-lhe a filosofia e a arte, a música e a poesia. A seguir escreveu um romance histórico sobre a vida e o tempo de Savonarola, o mártir de Florença. Nova sensação literária e novo êxito financeiro.
Mas o trabalho «abriu sulcos nela, tornando-a uma velha». Ela «gozou umas férias» escrevendo um poema dramático sobre as ciganas espanholas da época das Cruzadas; então, «descansada e refeita», voltou à Inglaterra para criar um tipo de operário radical, Felix Holt. Mais um livro sobre a vida provinciana do Midlands, e a sua inquietação levou-a novamente para o continente. Foi à Holanda e visitou uma sinagoga hebraica, com o fito de estudar os costumes dos judeus. «Nenhuma mulher estava presente, mas homens devotos havia não poucos... O cântico e o movimento ondulante dos corpos, quase uma contorção de reverência, são estranhos; mas chorei abertamente ao presenciar esse vago simbolismo de uma religião de sublimes, remotas tradições.» Escreveu então a história de Daniel Deronda e do seu sonho ardente por uma pátria na Palestina.
Concluiu o livro, e tornou a viajar.
Essa mulher que vivia com um homem casado estava a ser posta à prova. Talvez se sentisse um pouco assim como uma deusa que tivesse tropeçado e caído na Terra, e esquecido o caminho de volta para o Céu. Violara normas desse original povinho terrestre. E agora tinha de se haver com ele. De nada lhe valia, para conseguir uma absolvição, resmungar e enfurecer-se. Devia implorar a simpatia dele em nome do Céu. Mas primeiro devia contar uma história convincente de amor humano e de humana misericórdia. «As palavras da Divina Misericórdia, no entanto, nunca mereceram fé quando pronunciadas por lábios incapazes de ser movidos pela compaixão humana.» Eis por que nasceram Hetty Sorrel, Eppie e Maggie Tulliver. (pp. 112-114)
(Continua)

Fonte: https://www.facebook.com/ana.diogo.10/posts/1602591186487408?comment_id=1602822836464243&notif_id=1510524429081917&notif_t=comment_mention

sábado, 28 de outubro de 2017

VIDAS DE GRANDES MULHERES - 3

Continuando a divulgação do livro VIDAS DE GRANDES MULHERES (Henry Thomas e Dana Lee Thomas - Livros do Brasil, Lisboa), iniciada por Teresa Martins Marques:


GEORGE ELIOT (1819-1880) (pp. 108-109) - 2

Surgiu em Londres e foi nomeada subdirectora da Westminster Review. Confundiu os sabidos com a sua sapiência. Interessou-se pela nova ciência da frenologia – o estudo do carácter de uma pessoa pela conformação do crânio – e ela mesma rapou o couro cabeludo, a fim de que a Sociedade de Frenologia pudesse fazer uma experiência com um modelo de gesso da sua própria cabeça. Durante semanas, usou um chapéu nos salões de baile e nos teatros, até que o cabelo tornasse a crescer, e distraiu-se nos seus momentos de solidão a traduzir a Vida de Jesus do pesado alemão de David Strauss. Terminado esse trabalho, aproveitou as noites a traduzir a Ética de Spinoza do latim, depois das suas quinze horas de actividade por dia, como redactora da Westminster Review. Não havia entre os críticos literários um tubarão mais devorador e tremendo do que aquela mulher. Os seus comentários sobre as novelas modernas eram sem rodeios e aterradores. Mantinha polémicas com Carlyle, Huxley, Mill, Tyndall e outros principais mercadores de pensamento. Sentava-se nos restaurantes com ilustres emigrados, refugiados políticos do continente, aspirantes a escritores. Discutia a doutrina do socialismo com Louis Blanc, e a arte da insurreição com Mazzini.
A essa altura da sua vida, conheceu o arcanjo da arte de teorizar, Herbert Spencer, então conhecido como autor de Social Statics. Com ele foi aos teatros e deu passeios pelo Tamisa. Os amigos começaram a murmurar ansiosamente que os dois navegantes mentais tinham descoberto entre o seu equipamento espiritual uma emoção clandestina que podia tomar conta do barco e dirigir-lhe a rota. Depois de fazer a Mary Anne uma corte honrosa e analítica, Herbert Spencer esperava declarar-se. Admitiu publicamente, e também no seu íntimo, que nunca encontrara até então uma mulher cujas forças e fraquezas fossem em todos os pontos tão semelhantes às suas próprias. E Mary Anne encontrou no ousado arquitecto de teorias a personificação do marido ideal. Spencer considerara a evolução das coisas e julgara que o seu estado final devia ser... o de solteiro.
Não tardou que os dois não mais fossem vistos juntos. Mary Anne retirou-se discretamente para o seu gabinete e deixou que os seus amargos ressaibos sentimentais desaparecessem no trabalho. A vida apanhara-a afinal e desprendera-a da sua atitude de superioridade em frente da existência; e fizera-a lembrar-se de que era uma mulher e que podia ser ferida. Aos trinta, julgara-se velha, velha demais para ser atingida pelo tempo; agora, tinha bem mais do que trinta. Entretanto, na sua súbita velhice sentiu-se novamente jovem, jovem bastante para ser corrigida pelo tempo. Certa vez, essa Minerva da sabedoria – isso aconteceu antes que ela descobrisse ter um calcanhar de Aquiles – dissera com verdade e beleza:
- Para os velhos, sofrimento é sofrimento, para os novos, é desespero.
Havia tempos que ela dissera isso; agora 'sabia' isso, conhecia toda a profundidade da agoniante gradação que vai do sofrimento ao desespero.
Já não falava de si em termos intelectuais. «Nos meus momentos de tristeza, sinto uma impressão assim como de uma procissão que desfilou a cantar e cujos sons musicais se perderam ao longe, deixando-me só, em companhia dos campos e dos céus.»
Passado algum tempo, porém, observou com sarcástica dignidade: «A atmosfera e eu estamos melhor; lamentamos as nossas nuvens e sumimo-las todas, e contemplei mais seis meses de vida.»
(Continua)


quarta-feira, 25 de outubro de 2017

VIDAS DE GRANDES MULHERES - 2


Na sequência da série de posts iniciada por Teresa Martins Marques acerca do livro VIDAS DE GRANDES MULHERES (Henry Thomas e Dana Lee Thomas - Livros do Brasil, Lisboa), transcrevi e aqui vos deixo um excerto do 1º capítulo (pp. 105-107) da vida da grande escritora GEORGE ELIOT (1819-1880)


[...] Mary Anne Evans nasce[u] no dia de Santa Cecília, à beira da Floresta de Arden. Seu pai era um agricultor do interior do país, um «velho Tory honesto» que pronunciava a palavra «governo» de uma maneira que infundia a seus filhos pavor religioso. [...] Era firme como uma arca, e tão cheio de fé como a Sagrada Escritura. Nada havia a respeito da sua vida e da de sua mulher que fizesse pensar numa irregularidade. Ali estava, porém, sua filha Mary Anne, que navegava contra o vento. Tinha têmpera decidida e imaginação, e um código de justiça particular. Para ela, uma vaca não era uma vaca. Nem uma boneca uma boneca. Quando se zangava com a Humanidade – por causa de alguma coisa que o pai fazia – cravava as unhas na cabeça da boneca. Depois, como uma verdadeira deusa, arrependia-se e aplicava emplastros. Aos cinco anos, era «uma curiosa menina com feições fortemente caracterizadas e grande seriedade de expressão, a quem as companheiras mais velhas mimavam chamando-lhe mãezinha». Aos oito anos, viu na religião uma força activa. Antes dos doze, ensinou numa aula de catecismo dominical para filhos e filhas dos agricultores de Nuneaton. Aos treze, resolveu que a ortodoxia em religião não era necessária para a nobreza do carácter. Leu Wordsworth. As pessoas mais velhas ficavam espantadas ao ver, no meio da placidez normal da quinta Evans, dois olhos cintilantes que sobressaíam como estrelas num inexpressivo ambiente de noite. Chamavam-lhe Clematide, que, na linguagem das flores, significa beleza moral.
Entretanto, a nobre amiguinha do estudo sentia uma selvagem dentro dela. Vagueava pelos campos e pouco se importava se os espinhos lhe faziam sangue nos pés. Lutava com seu irmão até ficar com os cabelos empastados de barro. Gostava de se atirar e descansar em lugares mal cuidados, e de espremer uma amora como se fosse uma coisa viva. E quando ia à igreja, toda endomingada, sentia-se deslocada como um selvagem num palácio.
Afinal, porém, o inevitável correr dos anos tirou-lhe a rudeza. Tornou-se alta, elegante mesmo, e senhora de si. Renegou quase todos os seus «brinquedos» infantis. Ficou com os livros de Goldsmith e Scott, os ensaios de Lamb, as fábulas de Bunyan. O que lhe interessava era agora deliberadamente cultivado, e não simplesmente recebido de presente da Natureza. Leu os Pensamentos de Pascal, e ouviu as missas de Bach e as oratórias de Haendel. Deixou por algum tempo de ir à igreja. Aprendeu muitas línguas e desprezou muitas convenções. Enquanto as outras mulheres punham cosméticos e se tornavam garridas para atrair um homem, ela punha óculos para atrair a musa do saber; e ostentava ares professorais para manter a distância todos os homens, afastando-os de um procedimento romântico. Ainda era uma cigana; não já como criança, está visto, mas como filósofo. Nunca «se fixaria» e estabeleceria para se aquecer junto à moralidade-lareira da sua geração. Percorreria um itinerário de princípios morais e desventuras e revelações todo seu. Escandalizaria os pais e maridos ingleses. Quem é que ouvia falar de uma mulher respeitável na Inglaterra vitoriana que aprendesse a vida por experiência própria, sujeita à provação e ao erro? Uma esposa e uma mãe tinham de passar por muitas experiências e provações, sem dúvida, diziam os homens. Mas não deviam estar sujeitas a erros, e certamente que não deviam 'aprender'.
Mary Anne Evans, porém, era, aos vinte e um anos, mais do que um inglês. (Continua)

VIDAS DE GRANDES MULHERES - 1

( O cineasta Leonel Brito, meu querido Amigo, fica por mim nomeado responsável pelo arquivo on line destes textos.)
Assim farei...Lb
VIDAS DE GRANDES MULHERES

AUTORES: Henry Thomas e Dana Lee Thomas. Tradução de António Acauã, revista por A. Vieira d'Areia. Lisboa, Livros do Brasil, s/d. Colecção Vidas Célebres.
Título do original norte-americano:

LIVING BIOGRAPHIES OF FAMOUS WOMEN


INTRODUÇÃO
A palavra inglesa woman, mulher, provém do inglês antigo wifman, e significa The wife-half of man, a metade-mulher do homem. Essa metade da estirpe humana, que muita gente diz ser a melhor metade, foi conservada em submissão durante milhares de anos. «Dia e noite - dizia o velho código de Manu - as mulheres devem ser mantidas na escravidão, sob o domínio dos seus varões.» Segundo as primitivas leis romanas, o marido podia executar sua mulher, e o pai sua filha, por motivo de adultério. Mesmo após a publicação da Magna Carta, séculos mais tarde, uma mulher não podia legalmente acusar um homem por assassínio.
Na França do século XVIII, o ilustre Rousseau foi capaz de prever a emancipação da metade masculina da Humanidade, mas não a da metade feminina. «As mulheres - dizia ele - são criadas apenas para agradar aos homens... Sendo incapazes de julgar por si próprias, devem sempre ater-se ao juízo dos pais e dos maridos.»
E em muitas partes dos Estados Unidos, até à época da Revolução, as mulheres eram multadas e presas por falarem em público. Somente a ameaça de uma revolta por pate das Mães da Revolução compeliu os Pais da Revolução a reconhecê-las algo mais do que objectos de propriedade. «Desejo que te lembres das senhoras - escreveu Abigail Adams a seu marido John Adams, que tinha assento no Congresso Continental - e que sejas mais generoso e favorável a elas do que os teus antepassados... Se não forem concedidos às mulheres cuidados e atenções particulares, estamos decididas a promover uma rebelião.»
Só século e meio depois, contudo, é que os homens começaram a reconhecer as mulheres como suas iguais.
Até à presente geração, portanto, a metade do homem viveu coarctada. A despeito dos obstáculos que a cercavam, todavia, ela apresentou feitos não menos heróicos e brilhantes que os da sua mais tirânica metade. Nos tempos de Cleópatra e Teodora, quando os grandes homens eram quase uns brutos, as grandes mulheres não eram menos brutais do que os homens. E hoje que os homens procuram ser semideuses, as grandes mulheres não são menos endeusadas do que eles.
Este volume apresenta algumas personagens femininas capazes de , com dignidade e sem constrangimento, situar-se lado a lado com os seus pares masculinos.
Henry Thomas e Dana Lee Thomas